Era uma criança levada,
sem nome, sem nada. Nem menino, nem menina, criança era o nome perfeito para
aquelas travessuras. A bola era sua melhor companhia, “larga isso, criatura”,
dizia a mãe. Apostava corrida com a bola
ligeira na descida da ladeira, que sempre resultava em empate e, para
finalizar, um prazeroso chute em direção ao gol, ou naquilo que o Seu Porra
chamava de o portão da sua casa. O alarde era grande, não só pela pancada da
bola contra o portão e pela comemoração eufórica da criança, mas também pelas
carinhosas palavras que o Seu Porra proferia, honrando sempre seu apelido. Era
rotineiro toda essa cena, eles, bola e criança, Seu Porra e seu portão. Desde
os tempos em que a criança era quase ainda um bebe e mal sabia chutar a bola
até esses dias, em que a criança já tinha vigor no pontapé. Mas de tanto vigor,
sucedeu que um dia a bola, contra a sua vontade, atravessa aquele portão. Nesse
dia não houve euforia nem alarde. A criança não ousou transpassar o muro. Apesar
da pouca gentileza em suas palavras, Seu Porra nunca aparecera para lhe
incomodar com um olhar feio. Não seria justo atravessar aquele portão, já que
Seu Porra tinha todas as razões e nunca o fizera. Resignou-se apenas em gritar
com toda a humildade de quem se sente sinceramente arrependido: “bolaaaa,
devolva-me a bola, por favor!”. Seu Porra nunca fora um senhor de grandes
caridades, a vida lhe tinha sido muito amarga, não seria agora que iria o ser.
E foi aí, que a criança deixou de ser criança. A sua infância ficou do outro
lado do portão, tão perto, tão longe. Nesta mesma noite, sonhou que Seu Porra
engolira a bola. Depois de alguns anos, tornou-se homem ou mulher, tampouco nos
importa. Descobriu que os problemas de Seu Porra tinham o nome de alcoolismo, e
até ouviu falar que Seu Porra não era mesmo seu nome. Sentia tanta pena do Seu
Porra e da sua infância que, provavelmente, nem sequer existira. Que seja essa
pequena e inventada história dedicada ao Seu Porra e todas as crianças que não
tiveram infância. Que nunca tiveram uma bola para amar, nem que seja para
tê-las e um dia perdê-las, como é o caso da triste história da criança. Porque
esse portão pintado de melancólica nostalgia é o testemunho implacável de que
um dia houve uma bola e, mais que isso, uma criança.
01.08.2014
Nara Romero