A VEZ DO CORPO


“E é este então o pensamento que nos guia: durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos! Ora, este objeto é, como dizíamos, a verdade.” (Platão - Fédon)


“Quero dizer a minha palavra aos desprezadores do corpo. Não devem, a meu ver, mudar o que aprenderam ou ensinaram, mas, apenas, dizer adeus ao seu corpo – e destarte, emudecer.”
(Nietzsche – Assim Falou Zaratustra)


          Já cansado de tanta humilhação, submissão, desprezo, desdém, subestima, culpa, inferiorização e satanização, o Corpo, inteiramente suado, com a respiração intensa e o coração ainda acelerado, proferiu o mais alto grito de sua existência no ouvido do mundo.
            Desde antes mesmo do nascimento do corpo de Cristo, o grande separador da história ocidental dos homens, o Corpo já andava um tanto decepcionado com a imagem que construíam de si. Era acusado de enganador por estar armado com seus sentidos. Acusava-no de sedutor e aprisionador da Alma, coitada, pura e perfeita, como as donzelas de antigamente. O homem, então, só seria plenamente feliz quando libertasse a donzela Alma e cravasse uma faca no peito da fonte de todo mal, o Corpo. Pobre Corpo, chegou até mesmo a acreditar que era o grande culpado.
         Depois veio Cristo. O corpo, então, se encheu de esperança com todas aquelas histórias emocionantes e palavras complicadas contidas no livro dos cristãos, a bíblia. Era visível as mudanças no corpo do Corpo: um certo ar leve de criança, nos seus olhos já se via um brilho diferente, seu corpo inteiro ansiava por algo, por uma mudança. O amor e a bondade pareciam os mais sólidos pilares daquela crença. “Agora sim me libertarei!”, pensou o Corpo. Mas não foi bem assim. Pintaram-lhe todo de cinza. Esconderam-no de ponta a ponta. Proibiram-lhe de falar. Agora, já não era ele quem aprisionava, era ele mesmo, um autêntico prisioneiro. E tudo isso, mais uma vez, em nome dela, da majestosa, a Alma, agora, ainda mais divinizada.
            Alguns tempos depois, surgiu a sociedade moderna, cheia de novidades. O corpo ficou muito afetado com aquelas mudanças que lhe pareciam estranhíssimas. Antes, quando o corpo do Corpo estava mal, era deus quem procuravam. Agora era diferente. Um dia, o Corpo sentiu uma fortíssima dor de cabeça e, ao invés de rezar fervorosamente, lhe levaram a sala de um homem carinhoso que todos chamavam de médico. A verdade é que o Corpo nunca tinha acreditado muito no trabalho desses tais médicos, mas, a partir daí, passou a adorá-los. No começo tudo parecia maravilhoso. O Corpo sentia que todos lhe entendiam melhor, às vezes, até mais que ele mesmo. Como seria isto possível? Um dia, conversando com um colega que era médico, o Corpo percebeu que tudo, ou quase tudo, que era diferente do homem tinha virado máquina. O Corpo, nesse dia, passou mais de meia hora se olhando no espelho. Olhava sua própria simetria e, pela primeira vez, notou que era composto de reduzidas partes como havia dito seu colega. Mas não lhe agradava essa ideia, o Corpo queria ser um todo porque entendia que possuía dentes, lábios e gengivas, mas um sorriso não era composto de uma só dessas partes, mas sim de todas, de forma que na ausência de um deles, não seria um mesmo sorriso. A partir deste dia, o Corpo passou todas as noites em claro, os médicos chamavam isso de insônia. Recomendaram-lhe alguns remédios, não resolveram. O Corpo estava decepcionado demais para dormir tranquilo.
            Ora achava que os homens tinham razão: era ele um grande obstáculo ignorante para a humanidade, ora acreditava em si, no seu valor, mas já fora tão humilhado que um forte rancor nascia dentro dele. “Eles pensam que a maré vai, mas nunca volta e é aí que eles se enganam!” disse para si, revoltado, o Corpo. E foi numa destas noites profundamente tristes e solitárias de insônia que o Corpo tomou uma decisão. Cravou um punhal agudo no próprio coração, lugar onde os homens acreditavam que estava o cerne de todos aqueles sentimentos, bons e ruins, que lhe iam e vinham. Nesse instante último, ao som de um berro sofrido, porém forte, a humanidade percebeu que nada seria sem ele, o Corpo!

            Nada mais se sabe dessa história. As mãos pararam de escrever, os olhos de ver, os ouvidos de escutar. Já não há mais vida! Adoraria contar-lhes como ficou o mundo sem os seres humanos, mas não posso. Minha única esperança é que a Alma e sua imortalidade me venham contar. Mas, até agora, ninguém me bateu na porta.

Nara Romero
18/05/2012